António Tabucchi: O Jogo do Reverso Manuel Afonso Costa

Poeta, ensaísta e professor universitário.

António Tabucchi: O Jogo do Reverso

A paixão de Tabucchi por Portugal começou por Fernando Pessoa ao qual teve acesso nos anos sessenta em Paris numa época em que frequentava a Sorbonne. Parece que o primeiro contacto com Fernando Pessoa foi com o poema Tabacaria do heterónimo Álvaro de Campos, texto que encontrou, traduzido por Pierre Hourcade, num quiosque perto da Gare de Lyon. Nos seus livros, Portugal está quase sempre presente, desde A Mulher de Porto Pim em grande parte passado nos Açores, O Jogo do Reverso, tão pessoano e tão lisboeta, O Fio do Horizonte, Afirma Pereira até ao Nocturno Indiano, com passagem por Goa e onde mais uma vez se evoca Pessoa através de um célebre poema de Ricardo Reis. Com o Nocturno Indiano obteve o Prémio Médecis para melhor livro estrangeiro publicado em França. Alguns dos seus livros mais conhecidos são justamente Notturno Indiano,  Piccoli equivoci senza importanza, Gli ultimi tre giorni di Fernando Pessoa, Sostiene Pereira, e Si sta facendo sempre più tardi. Vários dos seus livros foram adaptados ao cinema, com destaque para Sostiene Pereira, onde Marcello Mastroianni realiza uma das suas últimas interpretações, em 1995, um ano antes da sua morte. 

Começar a ler Antonio Tabucchi pelo Jogo do Reverso é sem dúvida um bom começo, pois se é verdade que as ideias de jogo e de reverso são estruturantes de toda a sua obra, elas aparecem aqui e logo no título. A outra dimensão própria dos textos de Tabucchi, é como ele mesmo sublinhou a ideia de equívoco e de que as coisas são como são mas podiam ser de outra maneira, aliás muitas vezes são de outra maneira. Eu quero dizer contudo que são sempre de outra maneira, o que pressupõe uma flutuação permanente do sentido.  

Umas vezes o que parece é, outras vezes não é, ou vice-versa. Esse facto pode ser perturbador, mas não devia ser, na medida em que deveríamos estar já avisados e não levar as más caras, ou seja as máscaras, da realidade muito a sério. A obra de António Tabucchi constitui uma boa introdução ao sentido não dramático do livre arbítrio. Com ironia, as personagens de Tabucchi aceitam com resignação as partidas do acaso. Tabucchi domina os disfarces da Deusa Fortuna e mostra-nos como ela se mascara para lograr levar a água ao seu moinho.  

Por outro lado o autor combate sem denodo os preconceitos e as certezas apressadas. A deusa da fortuna ri-se de nós, das nossas convicções, e surpreende-nos através de desenlaces inesperados, como se a solução de tudo estivesse sempre na outra face, no avesso, no reverso. Como se estivesse, ou pelo menos pudesse estar.  

Estas ideias ou pistas como se preferir vão ao encontro de uma problemática sobre a identidade que é genuína em Tabucchi, a ideia, diria eu, de uma identidade móvel. A mobilidade assim como a sua celebração articulam-se com a ideia de instabilidade e com a inevitável insegurança. Grande parte da obra de Tabucchi é uma procura, do que está por detrás das aparências, o que constituirá o reverso daquilo que se mostra, um avesso do direito. Num universo assim em que o direito pode ser o avesso, em que a verdade pode estar no reverso, não há certeza de nada e portanto, como consequência disso, só pode haver uma demanda. Esta demanda é tanto mais sarcástica e light, diria assim, quanto há a certeza de que não há nada a encontrar. Nesse sentido a procura é uma odisseia lúdica e de algum modo insensata, ou melhor seria insensata se fosse redundante, mas em boa verdade não é redundante porque o ser reside nesta oscilação ontológica à maneira da ontologia pós moderna, que pressupõe uma identidade fluida, móvel, ambígua... ou líquida como sublinha bem o sociólogo da pós modernidade Zygmunt Bauman. 

Logo no início do romance António Tabucchi exercita a sua ideia de identidade móvel usando para o caso como uma espécie de homologia a heteronímia pessoana e usando-a de modo a explorar a ideia de mobilidade até numa perspectiva singularmente espacial. À medida que duas personagens vão conversando pela parte baixa da cidade de Lisboa uma delas vai assinalando escrupulosamente as mudanças de heterónimos do poeta, como se o deslocamento assinalasse as sucessivas mutações da identidade. O efeito é além do mais muito poético e surpreendente… 

“descíamos em direcção ao rio deambulando pela Rua dos Fanqueiros e pela Rua dos Douradores, vamos seguir um itinerário fernandino, dizia ela, estes eram os lugares predilectos de Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, semi-he terónimo por definição, era aqui que ele fazia a sua metafísica, nestas barbearias. Àquela hora a Baixa estava cheia de gente apressada e vozeira, os escritórios das companhias de navegação e das firmas comerciais fechavam os guichets, nas paragens dos eléctricos havia bichas enormes, ouviam-se os gritos dos engraxadores e dos ardinas. Entrávamos na confusão da Rua da Prata, atravessávamos a Rua da Madalena e seguíamos até ao Terreiro do Paço, branco e melancólico, onde os primeiros cacilheiros atulhados de gente largavam para a Outra Banda. Estamos já na Lisboa de Álvaro de Campos, dizia Maria do Carmo, em poucas ruas mudámos de heterónimo”.

Não posso deixar de me referir à capa desta edição da obra que está representada ao lado apenas porque ela faz plena justiça a Tabucchi e em particular a este livro e a este título. A capa representa o quadro de Velasquez, As Meninas, que se encontra no Museu do Prado, mas que foi realizado no Real Alcazar de Madrid. Sobre este quadro escreveu Foucault um texto nas Palavras e as Coisas que é um prodígio de lucidez, ironia e inteligência. Vale a pena ler esta novela de António Tabucchi e ao mesmo tempo deitar uma olhadela ao quadro e ao texto de Foucault. No quadro como facilmente se constata o autor obriga-nos a não o aceitar como uma imagem (imago) mas antes como sendo a realidade, as meninas estão agora ali à nossa frente e através do sortilégio de um espelho que porém não se vê, nós podemos ver o próprio Velazquez e os reis de Espanha que parecem estar atrás do pintor mas que estão no lugar para onde ele está a olhar. Tudo leva a crer que Velasquez que tem uma tela enorme à sua frente esteja a pintar os reis, então o que fazem ali as meninas… se o pintor não as está a pintar, … e mais não digo, deixando para o leitor o infinito jogo que este quadro oferece.   

António Tabucchi: O Jogo do Reverso

▸ António Tabucchi: O Jogo do Reverso

Autor:António Tabucchi

Editora:Quetzal

Data de Publicação:1990